terça-feira, 24 de junho de 2008

Os Incompreendidos – Pedro Palaia

Les Quatre Cents Coups
Direção: François T
ruffaut
França – 1959
99min

"Todas as artes baseiam-se na presença do homem, apenas a fotografia tira vantagem de sua ausência. A fotografia afeta-nos como um fenômeno da natureza, como uma flor ou um floco de neve cujas origens vegetais ou terrestres são parte inseparável de sua beleza."

São palavras de André Bazin. Bazin colocou que o cinema tem como "matéria prima" não a imagem subjetiva, formalista de Balázs e Eisenstein, mas sim a realidade, ou melhor dizendo, o "desenho deixado por ela no celulóide". Ao falarmos do ideal formalista na imagem cinematográfica, temos, em termos de mise en scéne, uma gama de possibilidades estéticas de criação de sentido. Tomemos como exemplo os filmes expressionistas, que tem fortemente em sua base a idéia das imagens como elementos formais de significação ou, nas palavras de Lebel, o "efeito ideológico". A cidade de desenhos angulares e disproporcionais de O Gabinete do Doutor Caligari e a escuridão de A Última Gargalhada, que remete à escuridão mental da personagem. Os elementos do expressionismo, em geral, tendem a criar uma relação espaço físico versus espaço psicológico que transcede a imagem realista. A luz, os cenários, o modo como estes são utilizados diante da câmera, são 'deformados' para adequar-se à situação dos personagens, da época, ou do próprio autor.

Bazin, pode-se dizer, foi o primeiro teórico a desafiar efetivamente a tradição formalista do cinema, ao lado do grupo de críticos da Cahiers du Cinéma e realizadores que estabeleceu a Nouvelle Vague, como sendo um contexto histórico "pertencente" ao ideal realista do cinema, ou seja, de que a forma do fime apenas "revela a mágica ordem do universo" (LEBEL, Cinema e Ideologia). Incluído neste grupo, Truffaut foi um dos principais críticos da publicação. Analisemos, então, a primeira cena de seu primeiro longa-metragem como metteur en scéne, Les 400 Coups (Os Incompreendidos, 1959). Vemos a torre Eiffel, e a câmera está colocada em um carro que se movimenta por Paris. Porém a câmera não se aproxima da torre, e sim, vagueia pela cidade, e a vemos ao longe, sob a silhueta dos prédios e galpões de fábrica. Em certos momentos, é totalmente encoberta por um telhado, mas reaparece mais à frente. Ao fim da seqüência, finalmente chegamos à torre, mas ainda assim, ela foi filmada tão de perto, e à altura dos olhos, que não é possível vê-la como um todo, ela deixa de ser a Torre Eiffel, e torna-se apenas um emaranhado de peças de metal, vista de baixo.

Esta é, talvez, uma das cenas mais subjetivas do cinema. Traduz completamente a situação da personagem de Antoine Doinel (Jean Pierre Léaud), uma situação de transição, de perda de identidade, de não pertencer àquela cidade. As imagens que mostram a torre por trás dos prédios remetem a algo inalcançável, Doinel, ao final do filme, é internado em um reformatório, está à margem da sociedade. Truffaut usa de artifícios da montagem e da mise en scéne para criar um subtexto para este filme: é um filme sobre a transição para a idade adulta, à maneira da Nouvelle Vague, mas com estes elementos de significação, que mais remetem à tradição formalista. Doinel, presente em mais outros quatro filmes, sempre interpretado por Léaud (Antoine et Collette - segmento do filme L'Amour à Vingt Ans (1962), Os Beijos Proibidos (1968), Domicílio Conjugal (1970) e Amor em Fuga (1979).) é o alter ego de Truffaut, que coloca elementos de sua infância nos filmes (sabe-se que ele foi internado em um reformatório aos 13 anos).

Analisemos a cena do parque de diversões. Doinel, de dentro do brinquedo, vê as pessoas do lado de fora deformadas pela velocidade, em câmera subjetiva. Ao mesmo tempo, é mostrada uma imagem de fora do brinquedo, com Doinel fazendo malabarismos lá dentro. Conforme o brinquedo pára, vemos que, além de Doinel, estão apenas adultos dentro do brinquedo, e todos estão em pé (na vertical), e ele está 'deitado' no ar, na horizontal. É interessante a comparação entre ele e os adultos, a imagem lembra o fato de que, apesar de um quase-adulto, ele ainda não se enquadra no grupo de pessoas. O mesmo acontece em relação à cena do jantar. Enquanto põe a mesa, Doinel passa um pouca da maquiagem da mãe, à frente do espelho, ou seja, ele começa a criar a sua personalidade adulta a partir de suas referências, os pais, que se mostram negligentes ao longo do filme, quando, ao encontrar a dúvida, o internam no reformatório. Apesar dos amigos da mesma idade e dos pais, na maioria das cenas, Antoine é mostrado sozinho e pequeno em relação aos outros elementos do quadro.

Ao fazer uma cronologia do filme, podemos dizer que Doinel é uma criança na primeira cena, quando desenha um bigode a caneta na modelo nua que os outros garotos admiram, e, ainda assim, recebe o castigo sozinho por parte do professor, sem manifestar nenhuma reclamação (essa submissão remete à atitude e ao medo infantis), e um adulto na última cena, quando, ao fugir do reformatório, ele corre até chegar ao mar. O mar pode ser lido como "o fim da linha", o lugar onde não se pode mais escapar, a vida adulta. A última imagem do filme, é um zoom in do rosto de Antoine, que, pela primeira vez, ocupa grande parte da tela, e não é mostrado como um elemento pequeno em relação ao cenário. Ele literalmente “cresceu”.

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